As pesquisas de percepção com servidores públicos são hoje uma prática internacional consolidada como instrumento de gestão pública. Experiências como o Federal Employee Viewpoint Survey (FEVS), nos Estados Unidos, o Public Service Employee Survey, no Canadá, o Civil Service People Survey, no Reino Unido, e a Australian Public Service Employee Census demonstram como esses levantamentos são utilizados sistematicamente para informar políticas de gestão de pessoas e avaliar ambientes organizacionais.
No Brasil, a primeira incursão metodológica robusta nesse campo ocorreu em 2018, com a pesquisa conduzida pelo Ipea em parceria com a Stanford University e integrada ao Global Survey of Public Servants (GSPS). Essa iniciativa pioneira permitiu situar o serviço público brasileiro em perspectiva comparada, analisando dimensões estruturantes da capacidade estatal como meritocracia, autonomia, capacidade relacional, recursos disponíveis e competências institucionais.
A nova edição desse esforço, a pesquisa Vozes do Serviço Público, resulta de uma cooperação entre a Secretaria de Gestão de Pessoas do Ministério da Gestão e da Inovação (SGP/MGI) e a Escola Nacional de Administração Pública (ENAP). Seu desenho metodológico se ancora nas melhores práticas internacionais, permitindo diagnóstico interno e benchmarking com um painel de 28 países participantes do GSPS.
A exemplo dos levantamentos internacionais mencionados, a pesquisa Vozes do Serviço Público adotou uma abordagem censitária, garantindo a todos os servidores federais a oportunidade de participação, e visa se tornar anual. O objetivo é fortalecer a identificação dos servidores com o instrumento, percebendo-o como um canal de interlocução com o órgão central de gestão de pessoas.
Uma inovação relevante da Vozes foi sua aplicação via o aplicativo Sou.Gov, desenvolvido pela SGP em parceria com o SERPRO. O app permitiu que todos os servidores federais recebessem e pudessem responder ao questionário digitalmente. A primeira rodada da pesquisa, realizada no final de 2024, recebeu cerca de 55 mil respostas, um número expressivo em termos absolutos, ainda que proporcionalmente modesto diante do universo total de servidores.
Para lidar com a baixa taxa de resposta da primeira rodada da pesquisa Vozes do Serviço Público (cerca de 10%), foi aplicada a técnica de propensity score matching, com o objetivo de corrigir o viés de não resposta e ampliar a representatividade dos dados1. Essa metodologia, baseada em variáveis observáveis — como gênero, faixa etária, raça e remuneração — permitiu ajustar estatisticamente os resultados, garantindo um retrato mais fiel da diversidade do funcionalismo federal. Para viabilizar as comparações internacionais, os dados da pesquisa foram alinhados metodologicamente ao Global Survey of Public Servants (GSPS), por meio da utilização de escalas compatíveis (Likert) e da identificação de oito questões semanticamente equivalentes. Além disso, para assegurar a comparabilidade com os demais países participantes, a análise considerou apenas os servidores que atuam em funções típicas do governo central, excluindo aqueles que operam na linha de frente do atendimento direto à população — como profissionais do INSS, do programa Mais Médicos e das polícias federal e rodoviária federal.
A análise dos dados revela achados interessantes. Os box-plots abaixo apresentam a distribuição dos indicadores dos 28 países participantes do GSPS entre 2010 e 2023. Os dados do Brasil — das edições de 2024 (Vozes) e 2018 (Ipea) — foram sobrepostos, permitindo avaliar se o país está abaixo, dentro ou acima dos padrões internacionais.
De acordo com a percepção dos servidores públicos federais, o serviço público brasileiro apresenta níveis de compromisso organizacional , incentivos ao desempenho e liderança acima da mediana dos 28 países participantes do GSPS. Isso revela um cenário institucional em que os servidores se sentem engajados com suas organizações, percebem incentivos (mesmo que limitados) à performance e consideram que a liderança comunica bem os propósitos e valores institucionais. Essa combinação indica uma cultura organizacional relativamente sólida e alinhada à missão pública, aspecto relevante para a efetividade da gestão.
Entre 2018 e 2024, observou-se uma trajetória positiva, especialmente nos indicadores de satisfação no ambiente de trabalho, liderança e incentivos ao desempenho . Destaque-se que nos dois últimos a evolução no período colocou o país acima da mediana internacional.
Em contraste, os indicadores relacionados à remuneração revelam que a satisfação salarial caiu significativamente entre 2018 e 2024, posicionando o Brasil no quartil inferior entre os países avaliados. Além disso, a percepção de equidade salarial — ou seja, se servidores com funções semelhantes recebem remunerações equivalentes — manteve-se consistentemente abaixo da mediana internacional. Esses dados sugerem um desafio estrutural na política remuneratória do setor público federal, que combina sensação de estagnação com a percepção de distorções internas, comprometendo o senso de justiça organizacional.
Embora os levantamentos de 2018 e 2024 apresentem diferenças metodológicas — incluindo o tipo de amostragem, o contexto institucional e os perfis dos respondentes —, a comparação entre ambos, conduzida com as devidas cautelas, oferece pistas relevantes sobre a evolução das percepções dos servidores públicos federais ao longo do período em análise.
Tais achados reforçam um ponto central no debate sobre gestão pública: a necessidade de incorporar instrumentos sistemáticos de escuta ativa e coleta de informações diretamente com os servidores. A capacidade estatal não se constrói apenas com reformas legais ou transformação digital, mas sobretudo com a gestão estratégica de pessoas e a criação de ambientes organizacionais que favoreçam o desempenho e a inovação.
Ao institucionalizar uma cultura de escuta — hoje prática comum nas administrações públicas mais avançadas —, a Administração Pública Federal dá um passo decisivo no fortalecimento da governança interna. A análise longitudinal dos dados da Vozes, articulada ao GSPS, tem o potencial de oferecer uma base robusta para orientar políticas de gestão de pessoas, qualificar a implementação de políticas públicas e reforçar a qualidade da administração pública brasileira.
Para que a Vozes se consolide como instrumento legítimo e eficaz de gestão, é essencial investir em estratégias de mobilização, comunicação e retroalimentação transparente dos resultados — promovendo o engajamento dos servidores e fortalecendo, de fato, uma cultura de escuta no setor público federal. Esses são os próximos passos.
* Diretor de Altos Estudos da Enap.
** Coordenador-Geral de Ciência de Dados da Diretoria de Altos Estudos da Enap.
A opinião dos autores nesse texto não representa necessariamente a posição da instituição na qual atuam.
1 - Essa técnica estima a probabilidade de resposta com base em variáveis observáveis — como gênero, raça, geração e faixa salarial — e utiliza o inverso dessa probabilidade como fator de ponderação. Com isso, os dados foram ajustados para refletir a composição da força de trabalho federal, incluindo os perfis menos representados. Trata-se de uma técnica consolidada, com respaldo na literatura especializada — incluindo os trabalhos de Rosenbaum e Rubin (1983) e Kim e Riddles (2012), e já aplicada em pesquisas como a PNAES (Pesquisa Nacional de Avaliação de Egressos do Senac). Adicionalmente, análises de sensibilidade foram conduzidas para assegurar a estabilidade dos achados.